ALTOS GIROS

Teste de centrífuga
Marcos Pontes
06/01/2006

“Lembre-se de respirar usando os músculos abdominais!”
Esta foi a última recomendação do médico responsável, antes que eu entrasse na cápsula de teste da centrífuga. Dentro, o espaço era reduzido. Assumi a posição no assento, enquanto um técnico ajudava com os cintos de segurança e a conexão dos sensores biomédicos. No meu braço direito, o velho conhecido medidor de pressão sanguínea. No peito, os sensores de batimento cardíaco e respiração. O assento era em posição horizontal, isto é, como antes do lançamento, deitado sobre as costas. Tudo conectado, tudo pronto, capacete colocado, microfone de contato corretamente posicionado, prosseguimos no teste das comunicações.
“Marcos! Como está me ouvindo?”, perguntou o diretor de teste.
“Alto e claro”, respondi.
Seguiram-se as instruções finais do diretor: “Observe o painel a sua frente. Existem luzes vermelhas e verdes espalhadas ao longo de todo o seu campo de visão na barra central. No centro do painel, você encontrará uma fita com dez círculos cortados identificados por números de zero a nove. Note que os círculos vão ficando graduamente menores à medida que seus números aumentam. Ou seja, o círculo zero é o maior e o círculo 9 é o menor. Os cortes são em direções diferentes. Quando eu disser, durante o treinamento, olhe para os círculos e memorize o lado do corte e o número do menor círculo que voce puder enxergar. Ainda, durante o teste, em momentos aleatórios, algumas das luzes vermelhas e verdes irão acender. O controle que você tem na mão direita tem dois botões. O botão inferior, no seu dedo indicador, com forma de gatilho, você deve manter comprimido durante toda a atividade. Se você soltar esse botão, a centrífuga será estacionada e o teste será terminado. O botão superior, no seu polegar, deve ser pressionado apenas quando alguma luz vermelha acender, em qualquer posição do painel. O teste terá duas fases. Ele iniciará com a aceleração gradual da centrífuga, durante alguns minutos, para 4 ‘g’. Esse fator de carga será mantido por um minuto. Durante esse tempo, eu estarei falando contigo e você treinará as técnicas para resistir e sobreviver nessas condições. Após isso, a rotação será reduzida lentamente até cessar. Teremos então 5 minutos de intervalo e comentários. Em seguida, virá a segunda fase. Nessa fase a rotação será mais intensa e a aceleração inicial mais rápida até atingir 8 ‘g’. Você precisa resistir a essa carga por um minuto. Use as técnicas aprendidas na primeira fase e a sua experiência como piloto de caça. Dúvidas?”
“Sem perguntas”, respondi.
“Pronto para iniciar?”
“Pronto!”
“Uma última coisa.”, disse o diretor.
“Não fale nada durante alto fator de carga!”
Eu sabia daquilo. Falar durante alto fator de carga transversal, além de atrapalhar a respiração, poderia resultar em danos na minha caixa toráxica.

Esse tipo de teste em centrífuga é necessário para determinarmos as reações individuais e melhorarmos nossa resistência quando submetidos às extremas condições dinâmicas que podem ser encontradas durante o vôo. Em condições normais, durante a fase de inserção em órbita, na subida, teremos de 3 a 4 ‘g’. No regresso da missão, na reentrada na atmosfera, essa carga varia entre 4 e 5 ‘g’. No caso de uma reentrada anormal, como no perfil balístico ocasionado por alguma emergência no espaço que necessite descida rápida, o ângulo de reentrada é maior, assim como o fator de carga. Nessa situação, estaríamos submetidos a uma carga de 8 a 10 ‘g’!
Nesse ponto, é importante entender o que é fator de carga e como ele afeta o funcionamento do nosso organismo. Fator de carga é o nome técnico dado às acelerações as quais o nosso corpo é submetido durante a trajetória de vôo. Em situação normal, em pé na superfície do planeta, estamos submetidos à aceleração da gravidade, com valor de 1 ‘g’ (1 gravidade “média” = 9.8 m/s2), no sentido vertical, apontado da nossa cabeça para os nossos pés. Isso gera o nosso peso, a força que podemos medir na balança! Essa direção de fator de carga, ao longo do eixo entre a cabeça e os pés, é chamada “longitudinal”. Essa é a direção normal de carga a qual ficamos expostos, sentados na cabine dos aviões, durante vôos acrobáticos, por exemplo. Por outro lado, se ao invés de ficarmos em pé, deitarmos no solo, olhando para cima, estaremos submetidos a 1 ‘g’ na direção “transversal”. Devido ao posicionamento das cadeiras da espaçonave em relação ao seu perfil de movimento, esse é o tipo de fator de carga primário ao qual estaremos sujeitos durante o vôo espacial. Os efeitos de fatores de carga longitudinais e transversais são diferentes. Contudo, de forma geral esses efeitos são relacionados com a multiplicação do esforço estrutural e a redistribuição de líquidos no corpo, segundo a direção de aplicação do fator de carga. Por exemplo, no caso longitudinal, imagine que você está em pé sobre uma balança. Submetido a 1 ‘g’, como normalmente estamos, você leria o seu peso usual, digamos 70 kg. Caso você estivesse em condições de 5 ’g’, como ficamos quando executamos um “looping” durante uma demonstração aérea, você leria seu peso, na mesma balança, como 350 kg! Imagine os esforços extras, devido a esse aumento repentino de peso, sobre sua estrutura óssea e muscular, assim como a compressão nos seus órgãos! Além disso, seu coração teria de bombear sangue para seu cérebro contra uma gravidade 5 vezes maior que a usual. A pulsação aceleraria rapidamente. Apesar dos esforços de compensação do organismo, essa condição resultaria na diminuição da irrigação sanguínea na sua cabeça, isto é, menos oxigênio para os orgãos ali instalados. Resultado? Depois de algum tempo, que depende da intensidade do fator de carga, mas geralmente entre 5 a 15 segundos para 5 ‘g’, a sua visão teria os primeiros sintomas da falta de oxigênio, parando de funcionar. A perda de consciência viria logo na sequência. No caso da direção transversal, não ocorre o problema de circulação sanguínea na cabeça. Mas a força resultante, entre outras coisas, afeta os olhos, deforma orgãos internos, comprime a garganta e impede a respiração normal com a caixa toráxica.
Certamente, existem técnicas operacionais que utilizamos para resistir a esses esforços usando nossos músculos para reduzir seus efeitos. Esse treinamento é um dos objetivos da centrífuga, onde o aumento de fator de carga é obtido através da aceleração centrípeta gerada pelo movimento circular da cápsula de teste.

“A rotação está iniciando”, falou o diretor.
Dentro da cápsula, eu pude sentir a aceleração aumentando. Procurei parar os braços e a cabeça em posição confortável. Quatro ‘g’. A sensação de pressão sobre o tórax é desagradável, mas tolerável. Respirar com o abdomem não é natural. O movimento saiu forçado. Exige treino. Mas não é difícil. Luzes acenderam. Pressionei o botão. “Cuidado para não confundir os botões”, pensei. O diretor perguntou sobre os círculos. Consegui identificar até o círculo sete. O seu rasgo estava para cima. A rotação reduziu. Respirei, literalmente, aliviado. Olhei para a câmera, instalada no painel diretamente apontada para o meu rosto. Fiz um sinal de positivo. O diretor comentou a primeira fase. Perdi algumas luzes. A respiração poderia ser mais rápida. No geral, tudo tranquilo. Podíamos prosseguir para a segunda fase.
De modo estranho, achei essa fase mais fácil, apesar de ter o dobro do fator de carga. Provavelmente devido ao aprendizado durante a primeira fase, fui capaz de adaptar rapidamente à situação de 8 ‘g’. O teste terminou rápido. Sem problemas. O giro parou, desamarrei da cadeira e sai da cápsula ainda um pouco desorientado. Caminhei lentamente para a saída enquanto pensava sobre o teste. “Interessante, de certa forma isso aqui é uma simulação do que passamos durante a nossa vida. Enquanto os dias ‘giram’, as pressões aumentam e diminuem. Sobreviver é então uma questão de adaptar-se rapidamente e continuar respirando!”

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